quarta-feira, 29 de abril de 2015

O olho do cu ou a nona porta do teu corpo??

"O olho do cu. Também podemos dizê-lo de outro modo como Guillaume Apollinaire: a nona porta do teu corpo. O poema dele sobre as nove portas do corpo da mulher existe em duas versões: a primeira, enviou-a o poeta à sua amante Lou, numa carta escrita das trincheiras no dia 11 de Maio de 1915, a outra, enviou-a do jesmo local a uma outra amante, Madeleine, no dia 21 de Setembro do mesmo ano.Os poemas, ambos belos, diferem pela imaginação mas foram compostos da mesma maneira: cada estrofe é consagrada a uma das portas do corpo da bembem-amada: um olho, o outro olho, um ouvido, o outro ouvido, a narina direita, a narina esquerda, a boca, a seguir, no poema para Lou, "a porta da tua garupa" e, finalmente, a nona porta, a vulva. Contudo, no segundo poema, o poema para Madeleine, sobrevém  no final uma curiosa troca de portas. A vulva recua para o oitavo lugar e é o olho do cu abrindo - se "entre duas montanhas de pérola" que será a nona porta: "ainda mais misteriosa do que as outras", a porta "dos sortilégios de que não ousamos falar", a "suprema porta".
      Penso nesses quatro meses e dez dias que separam os dois poemas, quatro meses que Apollinaire passou nas trincheiras, mergulhado em devaneios eróticos intensos que o levaram a esta mudança de perspectiva, a esta revelação: é o olho do cu o ponto miraculoso em que se concentra toda a energia nuclear da nudez. A porta da vulva é importante, claro (claro, quem se atreveria a nnegá-lo?), mas demasiado oficial importante, local registado, classificado, controlado, comentado, examinado, experimentado, vigiado, cantado, celebrado. A vulva: encruzilhada clamorosa onde se encontra a humanidade aos ladridos, túnel por onde passam as gerações. Só os tolos se deixam convencer da intimidade desse local, o mais público de todos. O único local verdadeiramente íntimo, perante cujo tabu até os filmes pornográficos se inclinam, é o olho do cu, a porta suprema;  suprema porque a mais misteriosa, porque a mais secreta.
       Esta sabedoria,  que custou a Apollinaire quatro meses passados debaixo de um firmamento de obuses, Vincent alcançou-a no decorrer de um só passeio com Julie que o luar tornara diáfana.
       Situação dificil aquela em que só podemos falar de uma oisa e em que ao mesmo tempo não estamos em condições de falar dela: o olho do cu improferido fica na boca de Vincent como uma mordaça que o emudece. Olha para o céu como se nele buscasse socorro. E o céu acode-lhe: envia-lhe a inspiração poética; Vincent exclama: "Olha!" e faz um gesto na direcção da lua. "É como um olho do cu rasgado no céu! "
      Vira para Julie o olhar. Transparente e meiga, ela sorri e diz: "Sim", porque há uma hora já que está dispsta a admirar seja o que for que ele diga.
      Vincent ouve o "sim" dela e tem vontade de mais. Julie tem um ar casto de fada e ele gostava de a ouvir dizer: "o olho do cu". Deseja ver aquela boca de fada pronunciar essas palavras, oh, como o deseja! (...)

Fonte: A Lentidão
             Autor: Milan Kundera
             LETRAS DO MUNDO
             EDIÇÕES ASA

Sem comentários:

Enviar um comentário